Por: Roger Filipe Silva*
Dia 28/04/2017, o país viveu mais um dia histórico. Já parece ser inegável que vivenciamos a realização da maior greve já registrada em décadas, aliás, talvez a maior já registrada. Apesar da euforia tomar conta dos corações esperançosos, é necessário que tenhamos certa cautela nas análises e não caiamos na pura e ingênua guerra de narrativas, que agora lota as redes sociais e a grande mídia.
Longe de chegar a resoluções, gostaria somente de fazer algumas observações, feitas no calor do momento, para ajudar no debate. Todo movimento social é feito por pessoas, mas que pessoas? Fiquei andando pelas concentrações, parando ocasionalmente nos grupos, alias bastante heterogêneos, que se encontravam concentrados no Largo da Batata, e ouvindo como quem não quer nada as conversas – sim, ao estilo bisbilhoteiro. Partindo do que ouvi e observei, tentarei fazer alguns levantamentos.
Motivos para a grande adesão à greve
- O desemprego crescente, alcançando as marcas de 13,7% neste semestre. Ouvi por diversas vezes, principalmente vindo dos mais jovens, frases relativas à dificuldade de se conseguir emprego e o quanto será difícil conseguir um bom emprego, mesmo com estudos, no futuro;
- A perda do poder de compra da população, com a elevada inflação dos últimos anos e os baixos reajustes salariais, principalmente dos cargos públicos com menores remunerações. Reclamações relacionadas à dificuldade de se sustentar a família, ao preço das coisas no geral e o medo de piorar ainda mais;
- O medo de não conseguir se aposentar e a conscientização sobre o que significa a Reforma da Previdência. Mesmo com a informação chegando de forma confusa, uma boa parte das pessoas falava com propriedade da reforma;
- A Reforma Trabalhista e a dúvida sobre o que ela realmente significa, mas a certeza de que virá para piorar o nível de exploração para o trabalhador. A quantidade de alterações propostas e que foram noticiadas, unidas às mudanças, inclusões e rejeições realizadas na câmara, levaram à dúvidas sobre quais são os pontos propostos na reforma trabalhista, porém, dado o caráter explicitamente classista do atual governo, não havia dúvidas entre os manifestantes de que pioraria as condições da classe trabalhadora;
- A existência de uma população trabalhadora bastante politizada, ainda que confusa em relação às possíveis resoluções que podem ser dadas aos problemas do país. Não há dúvidas de que os presentes no Largo da Batata, excluindo-se uma pequena parcela, eram estudados e tinham conhecimento de causa. Boa parte da manifestação ainda parece ser composta por uma classe trabalhadora com renda um pouco maiores que a média, e que tiveram a oportunidade de cursarem o ensino superior, ou o estarem cursando. Os mais pobres ainda não se fizeram presentes em massa, excluindo-se os participantes de movimentos sociais que lutam por terra e moradia, mas sobre isto falarei mais a frente;
- As próprias centrais sindicais, apesar da disparidade de discursos, que tratarei mais à frente, e a incompetência organizativa, no caso de São Paulo, o papel da burocracia sindical ainda se mostra essencial. Como únicos capazes de declarar greve de maneira formal e com o dinheiro necessário ao transporte, à realização de propagandas que atinjam níveis relevantes e à organização de atos, com a utilização dos carros de som, faixas e demais apetrechos, a ferramenta sindical ainda se faz necessária à organização de qualquer greve que se pretenda grande. Porém, seus problemas se aparecem de forma cada vez mais nítida, principalmente os seus envolvimentos partidários;
- Os partidos e movimentos sociais que parecem renascer, mas ainda reativamente. Apesar dos movimentos sociais nunca terem deixado de existir, suas lutas pareciam apagadas em meio ao turbilhão neo-desonvolvimentista do governo Lula, devido às cooptações e receios dos mais diversos. Os movimentos se demonstram mais ativos e participativos, ou ao menos socialmente relevantes, após as jornadas de 2013 e ao golpe cívico-parlamentar-jurídico, que recolocaram o PT na oposição, o tencionando à realizar acordos com os setores mais progressistas nacionais, de PSOL ao MTST, o velho inimigo comum parece ter unido uma vez mais o politicismo socialdemocrata aos ativismos pontuais da nova esquerda, com pitadas de marxismo aparecendo quando parece convir, muito mais no discurso do que na prática. Todavia, é notório que as paixões partidárias sejam ainda uma grande força aglutinadora, ainda que esteja caindo em descrença a romantização do passado do lulo-petismo, a noção pragmática de um governo possível continua forte. Embora, entre os diversos movimentos, partidários ou não, as rusgas continuem e as feridas estejam abertas, e podem ser vistas a olhos nus, a falta de perspectivas de um horizonte emancipatório leva os jogadores a aceitarem as regras sem grandes contraposições;
- O aperfeiçoamento de militantes e intelectuais que se entendem de esquerda à linguagem da internet. A utilização das ferramentas disponíveis para a propagação do ideário de esquerda, coisa antiga, mas que parece ter amadurecido às novas linguagens há pouco, além de possibilitar um contraponto importante ao discurso oficial e dar propriedade e visibilidade a assuntos que costumam ser tratados de forma superficial pela grande mídia, parece ter sido uma das principais responsáveis pela formação de novos militantes, além daqueles que simplesmente eram repostos nas fileiras universitárias;
- Talvez o que mais seja perceptível é o distanciamento, que já ultrapassou o ridículo, da dita classe política, que é, em sua maioria, a classe burguesa e latifundiária com disfarces de representatividade, dos interesses da população em geral. Sua capacidade de ignorar as necessidades e opiniões dos trabalhadores, seu afastamento material geográfico e experiencial, dada a sua vida material e seus próprios interesses, demonstra de maneira nua e crua a função que exercem desde sempre no país. Sem receio de demonstrar seus interesses de classe, se fecharam em um jogo ainda mais intrincado do que a nobreza francesa do final do século XVIII, e escancaram suas incapacidades, desonestidades e limites. A crise econômica diminui as brumas que encobrem a luta de classe, a crise política aquelas que encobrem a função do estado nesta luta.
O que queremos?
Agora entramos em terreno ainda mais lamacento, aqui se misturam todos os interesses, espiritualmente elevados ou os encontrados somente nos mais longínquos ciclos infernais. Cada grupo, em um esplendido exemplo da teoria lukacsiana da teleologia secundária, tenta dar uma finalidade ao movimento, mas o que vemos, na prática, ainda é uma miríade de interesses e resoluções, mas que tem em comum a defesa da queda de Temer e de suas reformas. Porém, uma vez que saia o Temer, o que fazer?
- Não à reforma trabalhista, não à terceirização, não à reforma da previdência e fora Temer são as principais reinvindicações do movimento grevista, não encontrando contraposições internas;
- Anula STF. Algumas células do PT, principalmente mulheres que veem a recusa das lideranças do partido erguerem tal bandeira como uma recusa misógina, defendem a anulação do impeachment e o retorno de Dilma como única saída à crise política atual, devido à legitimidade e legalidade do governo anterior. Porém há ressalvas de outras células, uma vez que o retorno atual de Dilma poderia rebaixar ainda mais a imagem do partido, devido à crise econômica e política atual, que poderia travar o governo, parecendo que seria mais interessante esperar pelas próximas eleições para o Lula aparecer como um novo messias;
- Diretas já. Defendido por quase todos os membros do movimento, excluindo-se os que desejam o retorno de Dilma, querem uma nova eleição para presidente;
- Fora todos e diretas já. Basicamente uma continuidade necessária da realização de novas eleições para o executivo, pois ninguém conseguiria qualquer governabilidade caso se mantenha o mesmo congresso;
- A formação de uma constituinte. Defendido por algumas alas dos movimentos estudantis e partidários, parece visar à realização de uma reforma política profunda, mas não expressa qual reforma seria necessária, parecendo almejar um debate no interior da constituinte para se chegar a tais resoluções;
- Defesa da Petrobrás e das estatais. Defende-se a existência de um ataque internacional que visa o desmonte das empresas nacionais, principalmente as estatais, e que a operação lava-jato, assim como outras operações atuais da polícia federal sejam partes deste plano, se fazendo necessária a investigação destas investigações.
- Lula 2018 e Lula livre. Tenta-se dar ao movimento característica partidárias de defesa do ex-presidente, colocando-se que haveria uma perseguição política impetrada pelo juiz Moro ao Lula e que o movimento deveria defendê-lo para que houvesse uma possibilidade real de este se eleger nas próximas eleições, fossem elas agora ou em 2018. A CUT, como porta voz do PT, ainda que existam rachas internos, defende sempre que possível esta visão.
- O fim da polícia militar. Apesar de não ser uma das pautas centrais do movimento grevista, a ideia encontra eco onde quer que seja manifesta.
Estas foram as principais pautas que pude observar, sejam nas conversas informais, ou vindas dos diversos carros de som. É latente observar a esperança ainda depositada em uma resolução politica dos problemas sociais, não havendo, ao menos de maneira relevante, propostas que se coloquem além da política, excluindo-se algumas faixas e músicas anticapitalistas tocadas ao som dos tambores dos movimentos estudantis e do MTST, mas que aparentam ficar em segundo plano.
Os contrários
Aqui não me alongarei, pois não há novidades, talvez desde o início do século XX não existam grandes novidades. Os contrários à greve geral costumam ter uma narrativa quase uníssona, com falácias ad hominem tendo preponderância.
- Os argumentos que visam desqualificar a moral dos grevistas, chamando-os de vagabundos, ladrões, vândalos, terroristas ou coisa que o valha;
- Tenta-se qualificar o movimento como político-partidário, sempre desqualificando este lado político logo em seguida ou um pouco antes;
- Dizem que a greve ou os atos atrapalham a sociedade, defendendo a manutenção da ordem, mesmo que isto signifique a resignação total;
- Demonstram apenas o lado mais violento das manifestações, tentando qualificar seus membros como baderneiros e criminosos;
- Dizem que é apenas uma pequena minoria de pessoas que concorda com este ou aquele movimento, visando, assim, diminuir a legitimidade das pautas.
- Buscam desmobilizar os trabalhadores pela pura ameaça de corte salarial e demissão.
Os principais atores contrários à greve geral foram aqueles que eram os principais atacados, seus aliados políticos e demais setores ligados à manutenção do status quo, assim como parcelas da população com pensamentos ligados ao conservadorismo ou ao mais puro reacionarismo moralista, incluindo-se aquelas com posições convictas e outras, ainda, bastante confusas. O governo federal e governos locais de partidos da base aliada tiveram grande relevância no combate à greve e às manifestações, começando por utilizar todos os argumentos acima mencionados, passando para a ameaça da utilização da força policial e, por fim, utilizando-se da força policial com o intuito puro de reprimir, demonstrar força e intimidar.
O ato no Largo da Batata
O ato estava marcado para começar às 16h, porém, dada a falta de transportes públicos, devido à própria greve, grande parte das pessoas atrasou, com a aglutinação chegando ao ápice somente em torno das 17h30. Enquanto isto, diversos ambulantes vendiam espetinhos, cachorros quentes e os mais diversos tipos de bebidas. Não havia grande contingente policial no Largo, apenas uma linha de soldados dispostos do outro lado da Av. Faria Lima.
Já havia uma quantidade razoável de pessoas quando cheguei, lá pelas 16h10, principalmente professores de escolas particulares, vinculados ao SINPRO, com suas famílias e camisetas laranja. Algo que me impressionou foi a quantidade de jovens, adolescentes e crianças, presente na manifestação.
Conforme caminhava conseguia discernir alguns grupos organizados relacionados às centrais sindicais e vários movimentos populares, assim como uma quantidade razoável de pessoas não ligadas a movimento algum, quantidade que tendeu a aumentar absurdamente com o passar do tempo, aumentando também a heterogeneidade da manifestação. Grupos LGBTs, sem tetos, professores, sindicalistas, metalúrgicos, motoristas, metroviários, estudantes e vendedores ambulantes formavam os grupos mais visíveis, sendo possível identificar gente de todas as idades, cores e credos, mesmo alguns indivíduos enrolados na bandeira brasileira integravam parte dos presentes. Os tambores e marchinhas formaram a trilha sonora, do início ao fim do protesto, aquecendo com dancinhas divertidas a noite fria. Diversas crianças brincavam nas redes que formam um tipo de obra pós-moderna, com redes ligando vigas de metal.
A grande quantidade de funcionários públicos e setores com maiores estabilidades trabalhistas e as adesões menores de trabalhadores de comércios e pequenas empresas, demonstram bem o plano governamental. A tentativa de rebaixamento de todos os setores ao mais baixo patamar de estabilidade, criando-se uma sensação de insegurança perante o futuro, junto ao aumento da terceirização e a quebra dos sindicatos para dificultar absurdamente a união e luta da classe trabalhadora, seja pelo motivo que for, aumentando a taxa de exploração ao impedir oposições fortes.
Ficamos reunidos no Largo da Batata por um longo período, entre discursos inflamados vindos dos caminhões de som, mas que não chegou a empolgar a população que já encontrava dificuldades de andar em meio à aglomeração, gritos de fora Temer, cantorias, churrasquinhos e gritos de guerra. Foi somente em torno das 19h que as lideranças, esgotadas as filas de gente querendo um tempo no microfone, iniciaram a marcha. O objetivo era chegar até a casa de Temer, onde o ato se encerraria. A ida foi extremamente pacífica, com as maiores tensões acontecendo, somente, na presença de alguns motoristas que tentavam fugir dos bloqueios, além da correria para comer cachorros quentes em algumas vãs paradas nas calçadas que, aliás, não tenho ideia de como chegaram ali.
No dia anterior, a polícia já havia informado que blindaria a casa e, obviamente, lá não se encontrava o presidente e nem nenhum membro de sua família, apenas filas de policiais preparados para reprimir quem se aproximasse. A casa fica próxima a uma praça, com ruas largas e canteiros centrais, mas sem muitas saídas possíveis em caso de repressão, uma vez que a polícia já havia fechado quase todas as próximas à residência. O que leva a uma reflexão, o que queriam as lideranças ao guiar cem mil pessoas, ou mais, até uma casa lotada de policiais prontos para o confronto e simplesmente terminar a manifestação ali, sem plano de retorno ao Largo ou a qualquer lugar mais aberto? Acredito que houve grande despreparo por parte das lideranças, que tiveram sorte, ou não, de não ocorrerem maiores problemas, além das prisões.
A manifestação chegou próxima à casa de Temer, o caminhão de som se prostrou em frente à rua que leva à entrada da residência, na qual estavam os policiais militares, iniciaram-se discursos pelo fim da reforma trabalhista e da previdência, puxando-se alguns coros, mas a tensão já estava posta, ao fundo começamos a ouvir as bombas de gás explodindo. As lideranças encerraram o ato às pressas com um “foi lindo, vamos derrubar este governo, agora voltem para casa em paz!” e começaram a pedir não à repressão. A polícia deve ter recebido a ordem para avançar, e assim começaram a fazer. A partir daí todos começaram a retornar ao Largo da Batata, com a polícia arremessando bombas e criando algum pânico, rapidamente controlado pelo resto dos manifestantes. Foi somente após a polícia iniciar a repressão que alguns jovens começaram a quebrar as vidraças dos bancos e demais locais símbolos do Capital e da exploração.
Reflexões finais sobre o ato e a greve:
- A heterogeneidade dos participantes, demonstrando enormes diferenças entre esta manifestação e as realizadas aos domingos com pautas pró-impeachment;
- O despreparo das lideranças e a urgente formação de lideranças que representem melhor a classe trabalhadora e lute pelos seus interesses, que vão além da briga meramente política e muito além da partidária, apesar de passar por ela;
- A problemática sindical, ainda mais quando relacionada à política partidária. Demonstrando sua necessidade enquanto ferramenta, mas, ao mesmo tempo, seus problemas quando se tornam fim e si. A pergunta: ainda há espaço para os sindicatos? É refeita.
- A multiplicidade de resoluções e pautas, mas que, diferentemente das manifestações de 2013, se ligam no que diz respeito às pautas centrais, contrárias às reformas e ao governo federal.
- A união de setores diversos, e por muitas vezes conflituosos, da esquerda e progressista. Ainda que, ao que tudo indica, o PT ainda não tenha realizado autocríticas sérias e continue com posicionamentos politicistas, voltados unicamente para o controle e manutenção do poder estatal.
- A classe trabalhadora voltando à pauta central da luta da esquerda, reunindo diversos movimentos sociais e demonstrando que as lutas destes movimentos não estão dissociadas das lutas da própria classe trabalhadora.
- A urgência de se concentrar as lutas, aumentando a união da classe trabalhadora, sua consciência e fomentando a luta de classes.
* Roger Filipe Silva – graduado em ciências sociais pelo CUFSA e professor de sociologia na rede pública de ensino do Estado de São Paulo.